Grupo de Investigação em Neurociências Cognitivas (GNC), Instituto de Ciências da Saúde (ICS), Universidade Católica Portuguesa (UCP).

Recentemente, no panorama internacional, intensificaram-se o número de publicações a reacender a discussão em torno da relação entre as Neurociências e as Ciências da Educação. Porém, são muitas as barreiras que continuam a adiar o sucesso desta parceria, tornando-se premente a delimitação das reais contribuições de cada campo científico. A rápida propagação de mitos que obscurecem os progressos realizados pelas neurociências cognitivas em várias áreas relevantes para a educação tem sido um dos principais problemas. O presente artigo surge para apresentar as principais questões que se debatem no âmbito desta relação, aclarar a desinformação existente, bem como despertar para a necessidade e urgência de um futuro de cooperação entre as ciências do cérebro e da educação.

Palavras-chave: neurociência cognitiva; educação; neuromitos; cérebro; aprendizagem.

1.  INTRODUÇÃO

Os anos 90 foram proclamados nos E.U.A. como “A Década do Cérebro”, designação impulsionada pelas grandes investigações neurocientíficas, de cariz clínico, com o principal objetivo de encontrar uma intervenção eficaz contra a demência (Varma, McCandliss & Schwartz, 2008; Jones & Mendell, 1999). Ao longo dos anos foram várias as descobertas sobre o funcionamento do cérebro, havendo no entanto muitas questões ainda sem respostas.

Recentemente, e graças a uma ávida curiosidade por parte dos profissionais de educação (e.g., Greenleaf, 1999; Jensen, 2000), singularizou-se a importância de algumas destas pesquisas, nomeadamente, sobre a percepção, a atenção, e a memória, e como poderiam ser informativas para a educação.

De uma forma simplificada podemos caracterizar a Neurociência como a ciência do cérebro e a Educação como a ciência do ensino e da aprendizagem. Considerando a significância do cérebro no processo de aprendizagem do indivíduo, assim como o inverso, parece-nos desde logo óbvia a relação direta entre as Neurociências e a Educação. Porém, e sobretudo no âmbito científico, nem tudo é simples de definir e, muito menos, óbvio de relacionar.

Segundo a literatura, é desde meados dos anos 60 que se tenta “casar” estes dois campos científicos (Willingham, 2009). Há cerca de 25 anos atrás propôs-se a criação de “Neuroeducadores” com a argumentação de que seria através do estudo do cérebro que a prática dos professores poderia ser transformada e melhorada (Cruickshank, 1981). Embora a ideia de que a investigação neurocientífica pode influenciar a teoria e prática educacional já não seja uma novidade, atualmente, com as novas descobertas científicas, a Neurociência e a Educação cruzam ainda mais intensamente, os seus caminhos.

O estudo da aprendizagem une inevitavelmente a Educação e a Neurociência (Goswami, 2004). A Neurociência Cognitiva é a ciência que tenta compreender e explicar as relações entre o cérebro, as atividades mentais superiores e o comportamento. Esta jovem disciplina das neurociências incide o seu estudo na relação entre o funcionamento neurológico e a atividade psicológica, dando um particular enfoque à análise do comportamento, como a manifestação última da atividade do sistema nervoso central (Posner & Rothbart, 2005). A aprendizagem afigura a neuroplasticidade e pode ser entendida como um processo através do qual o sistema nervoso cerebral reestrutura funcionalmente as suas vias de processamento e representações de informação (Geake & Cooper, 2003).

Considerando os resultados de vários estudos já não há grandes dúvidas que determinadas perturbações de aprendizagem encontram a sua melhor caracterização nas investigações de foro Neuropsicológico. O caso da dislexia é um bom exemplo, estando bem documentado o fato de que as ciências da educação e do comportamento consideravam que a dificuldade de leitura estaria dependente de falhas na percepção visual, enquanto os estudos no âmbito das Neurociências Cognitivas identificavam o principal problema como decorrente do processamento fonológico, demonstrando de forma clara as áreas de disfunção cerebral que justificam a etiologia da desordem (Shaywitz & Shaywitz et al., 2001).

De acordo com os últimos estudos, algumas perturbações de aprendizagem manifestam uma base neural detectável pelo que parece haver razões para se estar otimista quanto às medidas neurocientificas e confiar que, num futuro próximo, teremos instrumentos capazes de estabelecer um diagnóstico fidedigno (Willingham, 2008).

A relação entre as Neurociências e a Educação tem assim atraído a curiosidade não só no seio da comunidade de investigação, mas também entre os dirigentes de políticas educacionais e vários profissionais da área da educação. Tem-se salientado essencialmente o impacto que as Neurociências podem exercer sobre a Educação, evidenciando-se as últimas grandes investigações no âmbito das Neurociências Cognitivas, e quais podem e devem ser as suas aplicações na teoria e prática da educação. Todavia, a real contribuição das Neurociências para a Educação continua a ser a principal questão.

O que se torna ainda mais surpreendente, é o fato de os neurocientistas não encontrarem na literatura da educação muitas referências fidedignas sobre o cérebro e os novos desenvolvimentos científicos. O próprio relatório da OCDE – Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento – “Understanding the Brain. Towards a New Learning Science” (OECD, 2002) resultou num dos primeiros alertas para esta situação, visto que sugere uma investigação transdisciplinar de forma a criar pontes entre as ciências do cérebro e as ciências da educação (Jolles et al., 2006; Nes & Lange, 2007).

2.  NEUROCIÊNCIA E EDUCAÇÃO: UMA RELAÇÃO COM FUTURO

A sociedade criou demasiadas expectativas em relação ao que as Neurociências podem trazer à Educação, sendo algumas dessas crenças totalmente irrealistas. É uma armadilha assumir que a investigação neurocientífica, por si só, irá responder a todas as questões da educação (Fischer et al, 2007).

De acordo com Blakmore e Frith (2003) a abordagem unidireccional pode ser perigosa e a procura por respostas não deve incidir na questão de como a ciência do cérebro é aplicada à prática educativa, mas sim o que os educadores precisam de saber,  e como podem ser informados pela investigação neurocientífica.

Bruer (1997) salientou que a relação entre as Neurociências e a Educação poderia ser retoricamente atraente, mas que, cientificamente, representaria uma ponte demasiado distante. Para este autor é indispensável que haja grande prudência na tentativa de fazer ligações diretas entre a aprendizagem de sala de aula e as neurociências, e aponta a Psicologia Cognitiva como um potencial intermediário para ligar a ciência do cérebro à educação (Purdy & Morrison, 2009). Embora a psicologia cognitiva tenha as suas próprias implicações na educação, é consensual entre os especialistas que se trata da ciência mais adequada para desempenhar o papel de mediador. Blakemore e Frith (2009) acreditam que através da psicologia cognitiva as neurociências podem influenciar de forma mais rápida e cabal os  estudos no âmbito do ensino e aprendizagem. Devido à formação curricular, os psicólogos da educação parecem encontrar-se em melhor posição para se sentirem confortáveis em ambos os domínios (Berninger & Corina, 1998; Schunk, 1998; Stanovich, 1998).

Um diálogo interdisciplinar para impedir o domínio de uma ou de outra disciplina tem sido amplamente referenciado. Para Fischer e Immordino-Yang (2008) é expressiva     a magnitude dos estudos da ciência do cérebro para a educação. No entanto, torna-se premente a construção de uma nova ciência interdisciplinar em que cada um desempenhe papéis fortes e que sejam claras as ligações entre ambos os campos científicos. Uns designam por Mente, Cérebro e Educação “Mind, Brain and Education” (Fischer et al., 2007), outros referem a nova era da ciência e educação como  a Neurociência Educativa “Educational Neuroscience” (Goswami & Szűcs 2007).

Considerando o seu significado e enquadrando o termo na língua portuguesa, parece-nos igualmente adequada a designação de Neuro-aprendizagem, já que são nos processos (neuro)funcionais de aprendizagem que se sustentam as investigações deste novo paradigma.

Segundo vários autores, uma simples combinação de múltiplas disciplinas não parece ser suficiente para que este pressuposto seja alcançado (Samuels, 2009; della Chiesa et al., 2009). Para que esta abordagem não seja apenas uma fase transitória, e possa prosperar, os educadores precisam de conhecer a ciência do cérebro, e os cientistas precisam de entender, com maior profundidade, a educação.

Koizumi (1999) foi dos primeiros a diferenciar interdisciplinaridade de multidisciplinaridade e transdisciplinaridade, e a defender que só é viável gerar novo conhecimento com a criação de uma ciência transdisciplinar. Segundo este autor, na interdisciplinaridade e multidisciplinaridade, as disciplinas existentes influenciam-se reciprocamente criando interseções em duas dimensões (Koizumi, 2004).

A transdisciplinaridade, por sua vez, implica a cooperação ativa entre as disciplinas, que as leva a ascender a uma nova disciplina, dando origem a uma forma tridimensional (Figura 1). Trata-se assim, de uma abordagem dinâmica, em que as suas próprias estruturas conceituais são desenvolvidas através da fusão de disciplinas completamente diferentes, sendo a partir desta convergência de campos científicos que se torna possível criar novo saber ao nível de questões específicas (Samuels, 2009).

Figura 1: Transdisciplinaridade (adaptado de Koizumi, 2004).


Convencionalmente, as investigações evoluem de forma independente dentro das suas próprias disciplinas (Koizumi, 2004). Contudo, é necessário construir uma ponte   de fusão entre várias disciplinas e impulsionar a evolução de um novo e abrangente campo científico que exija novas metodologias e novas organizações de pesquisa.

O modelo de Koizumi (1999) provou ser uma ferramenta útil para esclarecer os pressupostos fundamentais de uma nova ciência, pois reflete tanto a sua estrutura inicial (interdisciplinaridade) como o objetivo a atingir – a transdisciplinaridade (della Chiesa et al., 2009).

Inspirado neste modelo o projecto transdisciplinar desenvolvido pela OCDE “Learning Sciences and Brain Research” (1999-2007) trouxe inúmeros desafios, começando desde logo pela resistência de alguns países na sua aprovação (della Chiesa et al., 2009). O maior obstáculo encontrado pelos responsáveis deste projecto prendeu- se com a gestão do diálogo entre as comunidades neurocientíficas e educativas. Este contratempo inesperado deveu-se sobretudo à dificuldade em reconhecer o conhecimento implícito no seu próprio campo e torná-lo mais explícito para os colegas de outro campo.

O ponto de partida para a compreensão mútua passa assim, pela utilização de um vocabulário que seja igualmente entendido por neurocientistas e educadores. Os próprios problemas de investigação devem responder a questões elaboradas pelo trabalho conjunto de forma a ir de encontro aos reais problemas que ocorrem nos contextos educativos. Um diálogo aberto e translúcido entre a comunidade neurocientífica e a comunidade educativa (incluindo pais e alunos) é essencial para o progresso deste novo campo científico, já considerado um dos mais importantes do século XXI (Koizumi, 2004).

Entre 2005 e 2006 o Economic and Social Research Council (ESRC) e o Teaching and Learning Research Programme (TLRP) organizaram com sucesso vários seminários no âmbito do Projeto “Collaborative Frameworks in Neuroscience and Education” no qual envolveram professores, neurocientistas, psicólogos, políticos e dirigentes educativos para discutir o potencial de um trabalho cooperativo de forma a conduzir a uma mútua compreensão educacional e neurocientífica (Goswami, 2006; Howard-Jones, 2008).

Como orientações para o futuro apontam-se os estudos ecológicos, i.e., investigações em cenários de prática educativa, substanciais para o domínio da mente/cérebro e da educação, da mesma forma que a pesquisa em ambientes médicos é essencial para o conhecimento sobre a prática médica (Hinton & Fischer, 2008).

Para se alcançar uma forte base científica no ensino e na aprendizagem são necessárias mudanças de infra-estrutura. Segundo Fischer e colaboradores (2009) tornou-se fundamental a implementação de três fatores: escolas de investigação; bases de dados partilhadas sobre a aprendizagem e desenvolvimento; e uma nova classe de profissionais (Engenheiros/Tradutores Educativos) delegados para facilitar a ligação entre a investigação e a política e prática educativa.

Embora os neurocientistas debatam já há décadas as formas de aprendizagem, verifica-se presentemente um enérgico movimento internacional para formalizar a conexão entre a ciência do cérebro e a ciência da educação e aprendizagem. Desde a criação do International Mind, Brain, and Education Society (IMBES), em 2004, e do seu jornal Mind, Brain, and Education, em 2007, que esta missão tem ganho expressão continuando até hoje a impulsionar a colaboração entre investigadores em neurociência, genética, ciência cognitiva e da educação (Fischer, 2009).

Os principais objetivos deste movimento passam por fomentar a interacção dinâmica da investigação científica e do conhecimento e prática educativa que permita desenvolver uma abordagem teórica e empírica que concilie as ciências da educação com as neurociências. A partir do momento em que a investigação começar a produzir material para uma melhor compreensão dos contextos de aprendizagem, aumentam as possibilidades dos políticos educativos e os próprios professores basearem as suas práticas e decisões educacionais em evidências empíricas em vez de opiniões, modas ou ideologias (Fischer et al., 2007).

A Japanese Society of Baby Science e a Brain, Neurosciences and Education SIG da American Educational Research Association são exemplos dos grupos e actividades que têm aparecido por todo o mundo que reconhecem as potencialidades de um futuro comum da ciência do cérebro e da educação, sugerindo ter chegado a altura certa para esta colaboração (Coch et al., 2009).

Grandes entidades como a Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento também validam esta nova abordagem, que na nossa língua podemos designar por “Mente, Cérebro e Educação”, realçando o seu papel para debater questões educativas (OECD, 2007).

Há sinais promissores de que o movimento “Mente, Cérebro e Educação” está a conseguir travar o cepticismo, e se está finalmente a edificar, assistindo-se inclusive à organização de conferências com a estreita finalidade de aproximar os desenvolvimentos neurocientíficos das comunidades educativas e públicas. Destaca-se o caso da “Brain Development & Learning”, que tem suscitado bastante interesse e que     em 2010 se prepara para realizar em Vancouver a sua 3º Bienal.

3.  “MENTE, CÉREBRO E EDUCAÇÃO”. O MOVIMENTO PORTUGUÊS.

A realidade portuguesa ainda está muito longe do que já se debate a nível internacional. No entanto, é visível um interesse crescente e os alertas para o papel significativo das neurociências cognitivas na identificação e intervenção precoce de vários problemas de aprendizagem e do comportamento. Segundo Castro Caldas (2007), “Não há hoje dúvida a propósito do papel que as Neurociências Cognitivas têm na compreensão dos fenômenos mentais. A aprendizagem é seguramente um dos capítulos mais importantes. (…) Parece urgente que alguns dos novos conhecimentos sobre este emergente capítulo do saber seja incorporado nas nossas decisões de ensino. Cada aprendiz tem as suas idiossincrasias, que temos que analisar” (p.42).

Apesar do aumento da atenção para este tema, em Portugal ainda se assiste a um lento crescimento dos estudos no âmbito das neurociências cognitivas, em geral, e na avaliação neuropsicológica, em particular. A pouca investigação teórica, empírica e metodológica, bem como a inexistência de instrumentos de medida específicos e padronizados, têm sido as grandes limitações na investigação nacional neste domínio, principalmente em crianças e adolescentes (Simões & Castro-Caldas, 2003; Simões et al., 2003).

Ao longo do presente artigo, procuramos apresentar diferentes perspectivas sobre a relação entre a Neurociência e a Educação para que se compreendam algumas das barreiras que ainda distanciam estas duas ciências, especialmente as que se prendem com a desinformação científica. Separamos a realidade da ficção e analisamos as questões mais atuais, sendo que possívelmente muitas interrogações poderão ainda emergir. Com esta revisão pretendemos provocar a primeira brecha no muro que separa as ciências do cérebro e as ciências da educação.

A partir da identificação dos principais problemas, há que agir rapidamente no sentido de impedir a propagação de ideias ou materiais baseados no cérebro pouco científicos e que em nada contribuem para a qualidade de aprendizagem das crianças.

Considerando a grande carência de estudos a nível nacional que entreruzem os mecanismos da aprendizagem com a óptica das neurociências, parece-nos preponderante que a comunidade neurocientífica portuguesa considere as questões aqui apresentadas para que investigações futuras possam ser mais profícuas, tanto no âmbito educativo como neurocientífico. A implementação de um movimento científico à semelhança do internacional ‘Mente, Cérebro e Educação’ parece-nos imprescindível para o nosso país.

Acreditamos que uma das ações fulcrais para o progresso científico passa pelo desenvolvimento de mais investigação dentro das escolas, sendo que esta deve ser sempre acompanhada por diferentes especialistas qualificados e intimamente ligados aos Centros de Estudos das Universidades. Torna-se prioritário reunir esforços para uma maior ação conjunta entre Instituições Escolares (públicas e privadas) e Instituições de Ensino Superior no sentido de desenvolver projctos de investigação-ação de qualidade. Talvez um dos pontos mais importantes esteja no intercâmbio de experiências e na análise partilhada dos problemas de investigação.

Quanto maior for o diálogo direto, menor espaço haverá para interpretações erradas, sendo mais esclarecedor para todas as partes. Os neurocientistas devem estar atentos ao despoletar de concepções errôneas e deve-se apostar cada vez mais na divulgação de literatura científica que faça a ligação entre as ciências do cérebro e a educação.

É determinante clarificar que os programas pedagógicos baseados no cérebro que os professores podem, eventualmente, querer usar nas suas aulas não virão diretamente  da pesquisa neurocientífica. Os educadores deverão trabalhar lado a lado com investigadores para desenvolverem e testarem várias hipóteses sobre o funcionamento dos mecanismos subjacentes à aprendizagem. O caminho bidireccional entre a sala de aula e o laboratório pode ser arriscado e longo, mas tendo em conta os possíveis benefícios, é certamente uma viagem que valerá a pena.

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